Por Carlos Sherman
Dedicado ao meu amigo Carlos Teles
O que é necessário não é a vontade de acreditar,
mas o desejo de descobrir,
que é justamente o oposto.
Bertrand Russell
ENDEREÇAR A VERDADE CONSISTE EM CONHECER OS FATOS, NÃO AS OPINIÕES… E é exatamente isso que praticamos todos os dias no campo da Justiça, baseado no vigoroso e inefável princípio do onus probandi… Neste artigo em especial citarei muitos dos homens notáveis sobre os ombros dos quais este anão que vos dirige a palavra subiu para ver mais longe… muito mais longe!!!
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O filósofo e matemático alemão Friedrich Frege (1848-1925) escreveria – abrindo os trabalhos:
“Entendo por pensamento não o ato subjetivo de pensar, mas o seu conteúdo objetivo”.
Isso, ipso facto, se aceito pela pertinência da definição, deitaria por terra um sem-número de pensamentos… juntamente com a devoção aos respectivos ditos pensadores!
Um pensamento é fruto inescapável do processamento neural; e será por meio da linguagem que trataremos de manifestar o seu conteúdo ou objeto. A linguagem é inata, hoje sabemos, mas a escrita não. O filósofo e matemático polonês Alfred Tarski (1901-1983) solucionaria o problema da correspondência entre uma proposição formulada pela linguística e a realidade; e o fez de forma surpreendentemente simples, intuitivamente satisfatória, e irrefutável.
Tarski focou na formulação semântica de proposições:
A sentença (T) é verdadeira se, e somente se, o que ela diz é verdade.Onde T seria a Convenção de Tarski.
Imagine que você e eu estamos contemplando uma bela cadeira vermelha, estilo Luis XV – exatamente como esta bem ao lado da lareira em minha sala. A proposição “Esta cadeira é vermelha” seria verdadeira se e somente se “esta cadeira” for vermelha. Isso me parece lógico! Ou não? E óbvio! O que você acha?
Então qual foi a contribuição de Tarski? A sacada de Tarski foi eliminar nebulosidades semânticas, preocupando-se em formatar de maneira objetiva a formulação das sentenças ou proposições, e evitando truques, hipérboles, verbosidades e falácias retóricas. Para isso ele utilizou os conceitos de “objeto” ou conteúdo, “verdade” ou veracidade, “metalinguagem”, “metalinguagem semântica” e “linguagem-objeto”. Por exemplo: se tomamos o português como metalinguagem e o inglês como linguagem-objeto, e o seguinte objeto “the dog is sleeping”, então poderíamos formular a seguinte sentença em nossa metalinguagem semântica: A proposição do inglês (linguagem-objeto) “the dog is sleeping” (objeto) corresponde aos fatos (é verdadeira) se e somente se o cachorro está dormindo.
A verdade começa por uma formulação semântica adequada que permita a sua comprovação ou refutação. O que está vago e mal definido não pode ser confrontado com a realidade. E se existe uma metalinguagem na qual podemos apresentar proposições, descrever fatos, então também será possível, e de forma trivial, estabelecer a correspondência entre fatos e proposições – endereçando assim a verdade ou a veracidade de sentenças e argumentos. Isso, e bastando alguma honestidade retórica e integridade intelectual – conforme acentuado por Feynman – nos leva à atitude científica…
A Convenção de Tarski (T) pode ser formalmente descrita por:
“(T) X é verdadeiro se, e só se, p; onde p é o predicado que pretendemos validar para a sentença X”
O exemplo utilizando uma linguagem-objeto em inglês serviu para conter eventuais arroubos relativistas de ordem interlinguística ou ainda intercultural. Vale repetir que a construção linguística é inata; em milhares de dialetos e diferentes linguagens em todos os tempos e lugares sempre estiveram presentes as figuras do sujeito, verbo – ou ação -, substantivo e predicado; já o vocabulário e as regras gramaticais precisarão ser aprendidos – e à duras penas.
Observem que o predicado “[…] corresponde aos fatos” ou “[…] é verdade” está protegido pela metalinguagem, não importando se algum dialeto porventura venha a evitar esta vital caracterização… Sendo assim “[…]” ou “X” poderá ser definido nos termos de qualquer linguagem-objeto; então, enfoquemo-nos na verdade, e utilizando como linguagem-objeto a nossa própria língua vernácula: o português.
E neste ponto ficará evidente a motivação por trás da incessante busca por proposições verdadeiras ou positivas na Ciência. E vamos com o eminente Karl Popper:
“De uma classe (ou um sistema) de proposições, que são todas verdadeiras, nenhuma proposição falsa pode ser assumida”.
Enquanto os postulados religiosos ou “espirituais” dormem em berço esplendido, percebam o cuidado em estabelecer os contornos da verdade ou da veracidade. Isso implica que, embora deus seja um bolso cada vez mais vazio, e enquanto reduzimos inequivocamente o oceano de ignorância, ainda assim não poderemos apenas por princípio descartar a existência de deuses ou do “unicórnio cor-de-rosa”.
De teorias (sistemas de proposições) que concordem com os fatos, não se pode derivar nenhuma proposição lógica que não concorde com os fatos. – Karl Popper
Esta importante regra, que de fato perfaz uma atitude ética, explica por que em Ciência efetivamos proposições positivas e nunca negativas. “A Terra descreve uma orbita fechada – ou captiva – em torno do Sol” é uma proposição científica; mas “não existem gnomos empurrando a Terra” não é – por mais que saibamos ser uma proposição lúcida. Podemos invalidar ou provar a falsidade de uma proposição positiva; e.g., “a Terra é plana e está assentada sobre colunas” é uma proposição científica, mesmo que sendo inteiramente falsa; mas “a Terra não é verde” não nos leva a lugar algum.
Claro que existe o fato da vida finita, de forma que o fator tempo a perder estará sempre em jogo, assim como a questão da prioridade ou utilidade: Cui bono? Ou seja, não podemos cientificamente e em princípio negar a existência de Tupã; mas podemos considerar a busca pela sua existência uma tremenda idiotice quando confrontamos a mais absoluta falta de evidências; isso, além do flagrante conflito com proposições já demonstradas como: “culturas primitivas praticaram o animismo” ou “culturas primitivas desconhecedoras do ciclo da chuva, cortaram gargantas e fizeram danças rituais para que chovesse”. E daí a escolha é sua!
As filhas do sumo sacerdote Anius transformavam o que quisessem em trigo, óleo em vinho. Atalida, filha de Mercúrio, ressuscitou diversas vezes. Esculápio ressuscitou Hipólito. Hércules resgatou Alceste da morte. Heres retornou ao mundo após passar uma quinzena no inferno. Os pais de Rômulo e Remo eram um deus e uma vestal virgem. O Paládio caiu do céu na cidade de Tróia. O cabelo de Berenice se tornou uma constelação. […] Dê-me o nome de um povo em meio ao qual incríveis prodígios não aconteceram, especialmente quando poucos sabiam ler e escrever. – Voltaire (Questões Sobre os Milagres; 1770)
A Teoria da Verdade como Correspondência nos assegura que um pensamento pode ser considerado verdadeiro se a proposição que formula tal pensamento é verdadeira. Proposições gerais ou universais devem ser encaradas como fundamentalmente hipotéticas, mesmo que possam ser verdadeiras. E por isso é tão importante o caráter científico ao reduzir seus problemas e limitar suas proposições, já que buscamos o acercamento e o endereçamento da verdade. Começando humildemente, poderemos construir proposições verdadeiras de grosso calibre, com no caso do Modelo Padrão da Física.
A Metodologia Científica é um sério e consequente conjunto de recomendações, ao que Gleiser jamais poderia haver chamado de cientismo… O que é isso? E cientistas não passam de homens neuropsicologicamente curiosos, obstinados, talvez ousados, e certamente sem temores conservadores; homens buscando a verdade e falhando em encontrá-la – mas inexoravelmente atidos a ela. E falhando poderemos aprender, e recomeçar; o que parecia ser uma potencial falsificação da teoria newtoniana da gravidade no caso da orbita calculada para Urano nos levou ao descobrimento de Netuno.
Mas voltemos à verdade, voltemos à minha cadeira vermelha, afinal você pode estar esperando para me desbancar. Então temos a seguinte proposição devidamente formatada, uma questão semântica que pode ser submetida ao escrutínio da ciência: “Esta cadeira é vermelha” é uma proposição verdadeira se, e somente se, esta cadeira é vermelha.
Mas como podemos assegurar que o vermelho que você vê é o mesmo que eu vejo? E como poderemos definir o que é ou não vermelho? Simples: imaginem vocês que providencialmente eu trago comigo um espectrofotômetro; um daqueles aparelhos que medem a frequência dentro do espectro eletromagnético, podendo exprimir a cor em um número objetivo dentro do sistema decimal, medido em comprimento de onda ou frequência – não importando que sejamos daltônicos, portadores de catarata ou icterícia. Através de uma singela convenção linguística concordaremos que comprimentos de onde dentro de determinada faixa do espectro eletromagnético nos leva por correspondência simples ao termo em português “vermelho”.
Uma psicóloga amiga me interpelou neste ponto: “Mas cálculos matemáticos são exatos?” Devo dizer que sim, lato sensu, mesmo que esse não seja o caso aqui! Mas entendo a confusão dela – stricto sensu. Ela, vocês e Gleiser estão interessados no erro referente a esta medição; afinal, este é um equipamento desenvolvido por físicos e engenheiros para medir o espectro da luz visível. Um equipamento vendido pela Internet, e que apresenta um valor objetivo em um display LCD, com uma precisão de 0,15 DE, levando apenas alguns segundos para calcular o resultado. E se for discutir sobre cognição e cores, esteja segura de conhecer os conceitos básicos relativos às disciplinas correlatas.
Diante de situações cotidianas como esta, me preocupo em entender como um experimento tão trivial suscita tanta contestação e controvérsia. Qualquer crendice, qualquer afirmação descabida, tem maior respeito, autoridade e aceitação do que o conhecimento objetivo de fenômenos naturais. Será o sistema educacional? Será a relativização filosófica? Serão tendências neuropsicológicas? Ou a conjunção sistêmica de todos estes fatores? Certamente não se trata de um problema relativo às “limitações da ciência” – como afirma Gleiser… Outras limitações e outras fronteiras estão em jogo; todas elas devidamente estudadas pela Neurociência Cognitiva.
Consideremos algumas variantes do Paradoxo do Mentiroso, sendo a mais antiga que se tem notícia a versão do jônico Eubulides de Mileto, sucessor de Euclides de Mégara, ainda no século VI AEC:
“Um homem diz que ele está mentindo. O que ele diz é verdadeiro ou falso?”
Ainda no século VI, o paradoxo também foi associado a Epimênides de Creta, que teria dito:
“Todos os cretenses são mentirosos.”
Um tal “São Jerônimo” teria aplicado o conceito a David, quando afirma nos salmos bíblicos que:
[…] Todos os homens são mentirosos. – Salmos [116:11]
Trata-se apenas de um truque lógico, com uma confissão moral… Teofrasto, sucessor de Aristóteles, escreveria três rolos de papiro sobre este “paradoxo”, enquanto Crísipo redigiria outros seis. Todo este trabalho e toda esta perda de tempo silogística seriam enterrados pelas areias do tempo. Esta antinomia prova que um argumento pode parecer lógico embora seja falso; e por vezes, como é o caso, ridículo…
Esta frase não é verdade.
Verdadeiro ou falso? Logicamente astuto, moralmente pouco recomendável ou desonesto. Tarski salientou que o truque fundamental do Paradoxo do Mentiroso reside no uso de uma linguagem semanticamente fechada ou negativa – conforme já foi explicado. E provar a inexistência constitui um absurdo lógico, como já sabemos. Mas devemos fundar aqui pelo menos duas ressalvas. Quando Sagan diz:
“A ausência da evidência não significa evidência da ausência”.
Faço a seguinte ressalva, anuindo e ampliando:
A ausência de provas não é prova da ausência; muito menos da existência.
Os argumentos contra a existência de propósitos morais para o universo são vastos e fortes. E não existem argumentos em favor de propósitos morais religiosos que não tenham sido invocados por meio de mentiras, fraudes, falácias retóricas e engodos semânticos… Nenhuma comprovação, nenhuma pista, nada! Por que devemos considerar religiões – qualquer uma – como um domínio de conhecimento?
O Universo e a Vida estão desenhados pela aleatoriedade e pela involuntariedade – quer gostem ou não. Podemos inventar opiniões, mas não poderemos inventar fatos; não impunemente! E, sem provas, fatos, ou evidências, não existe de fato conhecimento algum.
O que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. – Christopher Hitchens
Ao que também concordo e amplio:
O que é afirmado sem provas pode e deve ser rejeitado.
Finalmente:
Quem nada sabe em tudo crê. – Jan Neruda
Isso opõe Ciência e religião, e não as nivelas – nunca… Contemple e observe o Universo como ele realmente é, e maravilhe-se com isso; e ensinemos aos nossos filhos como encarar as suas próprias fronteiras sem verdades absolutas, nem mentiras politicamente corretas, ou “alívios” que obliterem a LUCIDEZ. Considere a aterrorizante possibilidade de que um ser humano, saudável por natureza possa estar privado de vivenciar a realidade? Considere a possibilidade do desperdício desta vida? Deus é um argumento autocontraditório, embora pareça tranquilizador; mas não nos liberta como humanos plenos. Nas célebres palavras de Cornelius Tacitus:
Tranquilitas non Libertas.
Ao que modestamente agregaria:
Tranquilitas non Veritas.
Quando nos curvamos à autoridade ou nos entregamos ao mero solipsismo, sem a submeter as nossas proposições ao exame de sua pertinência, estaremos potencializando problemas de toda sorte nas mais diversas áreas. Algumas disciplinas estão fundadas sobre falácias, e vivem da autoridade e da idolatria, e impulsionadas pelo historicismo – como a filosofia social, política, religiosa ou de relações humanas.
Diferentes modalidades de fascismos pipocaram nas mãos de líderes carismáticos, messiânicos e totalitários. Devotos e arrebanhados em torno de uma tal identidade nacional, estatal, racial ou religiosa, foram convocados à luta derradeira contra alguma entidade metafísica, demônios diversos, judeus, judeus, judeus, capitalistas, materialistas, cientistas etc… Esta é a sina historicista, com origem na lateralização de nossos hemisférios cerebrais – sendo esta outra tese.
Sabemos ainda pelo entendimento do comportamento humano que algumas mentes estão mais capacitadas do que outras para encontrar padrões e ordem em meio ao caos. Algumas mentes estarão ainda destinadas a seguir e idolatrar líderes, enquanto algumas fantasiaram doentiamente sobre a realidade. Alguns líderes estarão destinados à iluminação, enquanto outros pretenderão, pela névoa espessa e pela escuridão, um reinado de medo. Alguns estarão fadados à generosidade e a solidariedade, enquanto outros praticarão o mais sórdido egoísmo através de controle rígido e totalitário. O narcisismo, a ambição, a pulsão de vida e a procriação darão o tom; estamos bem distantes da savana africana, embora dispondo do mesmo aparato neural.
Vale notar que racionalismo e sensibilidade emocional não são mutuamente exclusivos. São características independentes e que podem até colidir em nosso cérebro, sendo estampado em nosso comportamento; mas uma pessoa emocional não significa uma pessoa irracional, e vice-versa. O sentimento é outra estória, é a verbalização da sensação emocional pura; e, portanto, estará impregnado pela linguagem, pela cultura, e por nossos estratagemas políticos. Daí tanta confusão.
Existem também pessoas que praticam o sentimentalismo; ou seja, que usam o sentimento como estratagema e alegando emoção… Daí a tal “espiritualidade”! A emoção é bioquímica, involuntária, real, física, e comanda as nossas vidas – sempre. O hipocampo, por exemplo, é responsável por selecionar e copiar trechos de nossa memória de curo prazo em nossa memória de longo prazo. Este importante módulo neural trabalha acossado pela emoção ou limitado pela falta dela. O racionalismo é uma capacidade genética, neural e bioquímica, e que não anula a emoção; sendo inclusive deflagrado por ela.
Gleiser comete muitos erros crassos em sua retórica quando deixa de trabalhar em prol do conhecimento para fazer o que chama de “estratégia diplomática”, e recusa a verdade. Ele comenta que deu uma entrevista para uma rádio AM, diante de uma plateia composta por pessoas simples – “operários e diaristas”; ao final, conta ele, foi interpelado por um senhor “com rugas precoces no rosto sujo de graxa”:
Quer dizer que o senhor quer tirar até Deus da gente?
Conheci muitos senhores com rugas prematuras mundo afora; e bem sei que o fenômeno da biologia da crença e o efeito rebanho não escolhem classes sociais. Mas a crença em deuses, a tendência a crendices sobrenaturais pode ser indutiva de piores condições sociais. De qualquer forma, uma boa instrução definitivamente pode ser um fator limitante no caso da tendência crente inata, e induzindo certa noção de lucidez e liberdade; e um fator estimulante quando a neuropsicologia é fértil para o convívio com a realidade. Mas vamos responder a Gleiser sobre a questão do senhor com “rugas prematuras”:
Não será mentindo sobre deuses forjados pelo historicismo para o mero controle político que o você aliviará o sofrimento deste senhor!
Por que Gleiser não lhes falou sobre os avanços em termos de Ciência Médica, com a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida – conforme supracitados? Gleiser não pensou que este senhor de rugas, por sua hesitação, e nesta mesma noite, vai pagar o dízimo a algum estelionatário? Este humilde senhor, além de estar livre da poliomielite, da varíola, do tifo, do sarampo, da morte prematura – com o sem rugas -, poderia estar livre também de ser sumariamente roubado! Aliás, este senhor tem a idade que tem, e pode orgulhar-se das rugas em seu rosto porque confrontamos as superstições em favor da VIDA!
A ignorância gera confiança com mais frequência do que o conhecimento: são aqueles que sabem pouco e não aqueles que sabem muito que tão positivamente afirmam que esse ou aquele problema jamais será resolvido pela ciência. – Charles Darwin
No século XVIII, as velhas crenças teológicas estavam sob fogo cruzado do livre-pensamento. Não obstante, a vontade de crer era reativada, reaparecendo de forma delirante, sempre que uma nova moda sobrenatural era encenada. A varíola foi uma destas oportunidades para a ignorância religiosa desfilar o círio, e desatando uma tempestade de protestos teológicos contra a razão… Um clérigo anglicano chegou ao cúmulo de publicar um sermão onde afirmava que:
[Assim como] as pústulas de Jó eram devidas à inoculação do diabo, assim havia sucedido com a crescente epidemia de varíola.
Vários “ministros” eclesiásticos escoceses escreveram manifestos contra a Ciência Médica e em especial contra a recente descoberta da circulação sanguínea, os estudos de anatomia, fisiologia, etc. – assim como o estudo de células-tronco em nossos dias; afirmando que estávamos “tratando de desafiar o julgamento de deus” – sobre quem deve ou não deve morrer, e quando… Mas a varíola responderia à toda esta carolice com mais e mais mortes; quanto mais oravam e praguejavam contra a Ciência, mais mortos. Os terrores teológicos foram acalmados pelo terror imposto pela realidade da morte!
A controvérsia parecia declinar, quando foi descoberta a VACINA. Os “clérigos” de todas as facções da cristandade afirmaram em uníssono que:
[A vacina era um] insolente desafio aos céus, e à VONTADE DE DEUS.
Em Cambridge e na Sorbonne universitários cristãos unidos pronunciaram sermões opondo-se à VACINA. O mais grave sucedeu quando em 1885 e já no século XIX houve um disparo no número de casos da doença em Montreal, Canadá; e a parte católica da população repudiou a vacinação. Um sacerdote católico declarou que:
Se estamos afligidos pela varíola é porque comemoramos o carnaval no último inverno, festejando a carne e ofendendo ao Senhor.
As mortes vieram sem trégua sobre os católicos; “deus”, por alguma misteriosa razão, pouparia apenas àqueles que foram vacinados…
Os Padres Oblatos, cuja igreja estava situada no coração do distrito infestado, seguiram denunciando a vacina; foi exortado aos fiéis para que se dedicassem a diversos tipos de devoção; com a permissão das autoridades eclesiásticas, foi ordenada uma grande procissão com um solene chamamento à Virgem, e foi cuidadosamente especificado o uso do rosário. (White; op. cit., v.II, p.60)
Pobres fiéis, aniquilados pela varíola! Esta seria uma excelente estória para Gleiser contar ao “senhor de rugas”; e sobre os mal entendidos envolvendo a nobre atitude científica – esta sim, uma verdadeira “benção”, se preferirem… E existem outros tantos exemplos. O mesmo sucederia com o advento da descoberta dos efeitos anestésicos do clorofórmio, pelo médico escocês Sir James Young Simpson (1811—1870). Simpson, em 1847, recomendou o uso do clorofórmio para alívio das dores no parto, ao que o clero lhe respondeu com Gênesis [3:16]:
E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará. – Gênesis [3:16]
Simpson, no entanto, logrou aprovar os anestésicos para os homens, salientando que:
Deus anestesiou Adão, adormecendo-o, antes de extrair sua costela.
Terrível! Sim, precisamos abolir tudo isso, o Corão, a Torá, o Velho e o Novo Testamento, a RELIGIÃO; para vivermos melhor, com mais saúde, paz, e em verdadeira harmonia. E não seremos capazes da fazê-lo se não pudermos entender e combater o primeiro fundamento contido em tais livros; i.e., o enaltecimento da ignorância pelo repúdio à razão e ao entendimento, ao conhecimento REAL, factual, científico… E a subsequente glorificação da submissão, da servidão e do conceito de manada.
Não seremos capazes de abolir tais livros se não pudermos entender antes a clara sentença de morte à consciência e àqueles que a conservam: os “hereges”… E não poderemos dar este passo se não pudermos constatar também o preconceito, o sectarismo, o racismo, a pulsão de MORTE, e o regozijo pela morte, contido em tais mensagens apologéticas.
Precisaremos confrontar os dogmas de tais sociedades extremamente preconceituosas, estratificadas, eliminando o aspecto “pecaminoso” de escolher com quem se casar, ou não se casar, e de viver como pretendemos; eliminando a figura absurda do dote, e enaltecendo a figura do afeto entre parceiros, entre casais. Esta não é a supremacia de uma cultura sobre a outra, senão a supremacia da liberdade sobre a opressão. Precisamos enaltecer o valor PENSAMENTO repudiando o culto à SUBMISSÃO…
Se eu pudesse impedir o sofrimento, eu o faria; se pudesse impedir o estupro, a violência contra crianças, a opressão de indefesos, a injustiça, eu o faria. E isso, além da coragem da verdade, me separa dos deuses… e os reduz a um pálido e doentio facho de terror, medo, e covardia – que a Neurociência pode explicar.
Se os deuses não se saíram bem com este mundo, por que se sairiam melhor em outro? O problema com as utopias é que nunca serão postas à prova.
E neste ponto devolvo a citação apelativa de O Pequeno Príncipe a Gleiser – porque este gesto de coragem é o verdadeiro gesto de amor:
Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. – Antoine de Saint-Exupéry (O Pequeno Príncipe)
Um homem de bem poder até seguir em frente com sua preferência devota, mas não pode esconder a VERDADE alegando que não existem verdades… E escutem a Galileu quando sabiamente adverte que a melhor forma de endereçar a verdade é propor proposições bem demarcadas e objetivas; questões genéricas e o truque da VERDADE ABSOLUTA só serve ao propósito de destruir proposições claras e objetivas, e benéficas à VIDA. Sim, porque diminuímos a mortalidade, a violência, e aumentamos a expectativa de vida porque existem verdades… Mas subimos uma rampa em forma de serra, com vieses locais de alta e baixa… mas avançando de forma contingente, convergente e cega… E fascismos do tipo Lula-land, como presenciamos em nosso país, destroem os sonhos de algumas gerações. Destacando mais uma vez que existem gradações de erro, existem verdades, existem mentiras!
[…] não há testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer […]. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. – David Hume
Dito de outra forma, quando a resposta para uma dada questão pretende ser definitiva, mas termina por abrir mais perguntas do que elucidações, então estamos divergindo, e não nos aproximando do entendimento, de forma que não existe de fato nada a ser celebrado como “definitivo” – e ao contrário.
Outro tipo de desserviço intelectual é o deboche… por vezes cínico… Charles Bukowski arrastou um rebanho de tolos, pela vã idolatria, enquanto se autodestruía pública e narcisisticamente. O mesmo fenômeno, com severos agravantes, pode ser dito do mito de Che Guevara, um psicótico covarde e assassino. Sendo estas proposições amplamente comprovadas – embora de outra classe de verificação: a documental.
Lutamos por essa indelével nuance que distingue o sacrifício do misticismo, a energia da violência, a força da crueldade, por essa nuance ainda mais sutil que separa o falso do verdadeiro, e o homem que almejamos nos tornar dos deuses frágeis que vocês reverenciam. – Albert Camus (Carta a um Amigo Alemão – I; 1943)
MAS SIM, EXISTEM VERDADES – mesmo que não as queiram encarar… E relativizar a existência de proposições verdadeiras tem sido o primeiro ato daqueles que logo em seguida passarão a reclamar autoridade sobre a realidade – e sem apresentar qualquer tipo de prova, senão o CINISMO e não raro o DEBOCHE… Mas estarei aqui para denunciar!
A Filosofia não consistiria afinal em fingir ignorar o que se sabe e saber o que se ignora? Ela duvida da existência, mas fala seriamente do “Universo”. – Paul Valéry (O Homem e a Concha)
Homens “tementes a deuses” realizaram proezas intelectuais e científicas; sempre e quando atuaram como cientistas, como homens livres, e avessos à necessária submissão dogmática religiosa – exercida pelo temor… Homens religiosos emularam comportamentos científicos, e vice-versa. Então, separem conceitos e ideias de homens, e credos ou temores de atitudes…
O que é necessário não é a vontade de acreditar, mas o desejo de descobrir, que é justamente o oposto. – Bertrand Russell
Sob o obscuro pretexto de não atingir a perfeição muitos deixam de fazer a sua parte, capengando, e impedidos de culminar naquilo que realmente importa: PROGRESSAR!
Algumas pedras da tradição devem ser preservadas – poucas; mas não por respeito às pedras, mas por amor aos homens…
FELIZ DO HOMEM QUE PODE OPTAR PELA VERDADE!
Q.E.D.
Carlos Sherman
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