Por Carlos Sherman
Clive Wearing passou para História como um dos casos mais espetaculares de amnésia já registrados, além de figurar no top-five na lista de estudo de casos da também espetacular trajetória profissional e neurocientífica de Oliver Sacks – ele mesmo, um caso “espetacular” da Síndrome de Charles Bonnet. Não bastassem esses atributos “espetaculares”, Clive também protagonizaria uma espetacular estória de amor… que resiste à memória – ou quase isso.
Sacks registraria o caso em um memorável artigo para o The New Yorker, intitulado: O Abismo – Música e Amnésia… ao que agregaria: AMOR. Em março de 1985, Clive Wearing, um eminente músico e musicólogo inglês de quarenta e poucos anos, foi atingido em cheio por uma infecção no cérebro – uma encefalite herpética -, afetando especialmente regiões relacionadas com a memória, e deixando-o subitamente com apenas alguns segundos de memória – sendo assim o caso mais devastador de amnésia já registrado. Novas experiências eram pulverizadas quase que instantaneamente – como sua esposa, Deborah, escreveria em seu livro de “memórias”: “Forever Today” – ou, Para Sempre Hoje (2005)…
De maneira muito peculiar, a sua capacidade de perceber o que havia visto ou ouvido não era prejudicada; mas ele não era capaz de reter qualquer impressão de algo por mais tempo do que um piscar de olhos. Na verdade, se Clive piscasse, suas pálpebras se abririam sempre para revelar um novo filme. A visão, antes do piscar de olhos era totalmente esquecida. Cada piscada, cada olhar para longe e para trás, trazia-lhe uma situação inteiramente nova.
Podem imaginar a angústia de Clive? Como se sua vida passasse como um filme defeituoso, com problemas de continuidade, o copo meio vazio, depois cheio, o cigarro de repente mais comprido, o cabelo do ator agora despenteado, agora liso. Mas esta era a vida real deste homem, uma sala transmutando em formas, em uma dança que era fisicamente impossível.
Além incapacidade de preservar novas memórias, Clive foi acometido de um tipo amnésia conhecida como retrógrada, com a supressão de praticamente todo o seu passado. Quando foi filmado em 1986 para o documentário também “espetacular” de Jonathan Miller, “Prisioneiro da Consciência”, Clive mostrou uma solidão desesperada, além de medo e perplexidade. Ele estava agudamente, continuamente, agonizantemente consciente de que algo bizarro, algo terrível, estava acontecendo… Sua queixa, constantemente repetida, entretanto, não era de uma memória defeituosa, mas de ser privado – de algum modo misterioso e terrível – de toda e qualquer experiência; em suma, privado da consciência em relação à própria vida – como Deborah descreveria:
“Era como se todo momento de vigília fosse o primeiro momento de vigília. Clive estava sob a impressão constante de que acabara de sair da inconsciência porque não tinha nenhuma evidência em sua mente de ter estado acordado antes… “Eu não ouvi nada, ou vi qualquer coisa, ou toquei em algo, ou cheirei qualquer coisa”, ele dizia. “É como estar morto.”
Mas observem que Clive podia falar, expressar em língua inglesa, bom vocabulário, construções lógicas, e entendimento semântico sobre ouvir, ver, tocar, cheirar… morrer. Os únicos momentos em que se sentia vivo era quando Deborah o visitava. Mas no momento em que ela saia, ele ficava desesperado… e quando ela chagava em casa, dez ou quinze minutos depois, encontrava repetidas mensagens dele em sua secretária eletrônica: “Por favor, venha me ver, querida – faz muito tempo desde que eu vi você. Por favor, voe aqui na velocidade da luz.”
Passaram-se vinte anos antes, e Clive estava mudado pela insistência de Deborah em amar… Nada restava do homem assombrado e em agonia, do filme de Miller, que emergiu para uma figura elegante e borbulhante de vida, no verão de 2005. Clive e Deborah seguiam apaixonados um pelo outro, apesar de sua amnésia. O livro de Deborah tem o subtítulo “Uma memória do amor e da amnésia”. E cada vez que ela chegava, ele a cumprimentava carinhosamente, com extrema dedicação, como se ela sempre acabasse de chegar. Deve ser uma situação extraordinária, enlouquecedora e ao mesmo tempo lisonjeira, ser vista sempre como nova, como única… repetidas vezes, e sempre mais… como um presente, com se Deborah representasse a própria vida.
Certa feita, em visita a Clive, Sacks notou dois volumes de “Quarenta e Oito Prelúdios e Fugas” de Bach em cima do piano e perguntou a Clive se ele tocaria alguma coisa. Ele então alegou nunca haver tocado nenhum deles antes, e começou a tocar o Prelúdio 9 em Mi Maior dizendo: “Eu me lembro deste aqui”. Ele não se lembrava de quase nada a menos que estivesse realmente fazendo aquilo… e então ele pode chegar até lá, até o fundo. Sacks conta ainda que Clive inseriu uma improvisação minúscula e encantadora em algum momento, uma espécie de “final de Chico Marx, com uma enorme escala descendente”. Com sua grande musicalidade e humor, ele podia facilmente improvisar, brincar, tocar qualquer peça musical… até o fim.
[Stanno cercando un gran finale… estou seguro de que me concederam 200 palavras mais para contar esta linda estória!]
Já se passaram vinte e quatro anos desde a doença de Clive e, para ele, nada mudou. Pode-se dizer que ele ainda está em 1985 ou, dada sua amnésia retrógrada, em 1965. De certa forma, ele não está em lugar nenhum; ele abandonou completamente o espaço e o tempo. Ele não tem mais nenhuma narrativa interna; ele não está levando uma vida no sentido que o resto de nós faz. E, no entanto, basta vê-lo no teclado ou com Deborah para sentir que, nessas ocasiões, ele é ele mesmo de novo e totalmente vivo. Não é a lembrança das coisas passadas, “de uma vez”, que Clive anseia ou pode alcançar. É a reivindicação, o preenchimento do presente, o agora, e isso só é possível quando ele está totalmente imerso nos momentos sucessivos de um ato. Sacks escreveria: “É o “agora” que atravessa o abismo.” Deborah escreveria: “a proximidade da música de Clive e seu amor por mim são onde ele transcende a amnésia e encontra a continuidade; não a fusão linear de momento após momento, ou baseada em qualquer estrutura de informação autobiográfica-, mas onde Clive e qualquer um de nós está finalmente onde estamos, e sendo quem somos.”
Sacks faleceu em 2015, deixando um vazio que não poderá ser facilmente preenchido… seja pelo vigor intelectual, seja pela qualidade humana… Deborah e Clive continuam juntos, embalados pela música do amor, que finalmente prova ser capaz de transpor qualquer abismo… tempo, memória…
Carlos Sherman
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