Por Carlos Sherman
Durante o último terremoto no Haiti – 7.3 graus na escala Richter – em 2010, profundos desvios cognitivos de confirmação também sacudiram a região. O terremoto de grandes proporções causou enormes danos ao pobre país. Milhares de edifícios, incluindo os as edificações mais significativas ao patrimônio e à vida da capital – como o Palácio Presidencial, o edifício do Parlamento, a Catedral de Notre-Dame, entre outras igrejas, a principal prisão do país, e todos os hospitais e maternidades – foram indiscriminadamente devastadas. A tragédia contou 316 mil mortos, 350 mil feridos e mais de 1,5 milhão de flagelados, com 2.400 amputações.
O pastor cristão americano Pat Robertson declarou em seu canal televisivo Christian Broadcasting Network que o terremoto era “uma maldição de deus, uma vingança, um castigo”, em função de um suposto “pacto com o diabo”, orquestrado – pasmem – na época da independência do Haiti – em relação à França – em 1804:
Algo aconteceu há muito tempo no Haiti e as pessoas, talvez, não quisessem falar sobre isso. Estavam sob domínio francês… vocês sabem, Napoleão III ou qualquer coisa assim, juntaram-se e fizeram um pacto com o diabo. Disseram: “Vamos servi-lo se nos libertar do Príncipe”. É uma história verdadeira. E o diabo disse: “Tudo bem, está combinado”. E os franceses foram expulsos. Os haitianos revoltaram-se e conseguiram libertar-se. Mas, desde então, foram amaldiçoados com coisas atrás de coisas. – Pastor Pat Robertson
Além do ocorrido, e do fato de que a suposta “vingança de deus” tardou mais de 200 anos, desde o “pecado cometido”, vale lembrar também que o Haiti foi primeiro país do mundo a abolir a escravidão – amplamente endossada pela bíblia. Terá sido a abolição da escravatura também resultado de algum pacto demoníaco; e eventualmente está sendo punido por deus com estes sacrifícios humanos em 2010? Pat Robertson é um tremendo picareta, um golpista astuto, mas os desvios de confirmação estão amplamente configurados nos cérebros de seus devotos fiéis, e assim o mago contará com uma plateia crédula a ser facilmente enganada.
Antes de uma entrevista ao telejornal do SBT em cadeia nacional, em 14 de janeiro de 2010, sem saber que estava sendo filmado e gravado, o cônsul honorário do Haiti em São Paulo, George Samuel Antoine, proferiu as seguintes frases:
A desgraça de lá está sendo uma boa pra gente aqui ficar conhecido. […] Acho que, de tanto mexer com macumba, não sei o que que é aquilo. […] O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano, tá foda! – George Samuel Antoine (Cônsul Honorário do Haiti)
Samuel, com um terço do Santo Rosário nas mãos, exprimiu sua fé cristã:
Esse terço nós usamos porque dá energia positiva; acalma as pessoas. Como estou muito tenso, deprimido com o negócio do Haiti, a gente fica mexendo com várias [coisas] para se acalmar. – George Samuel Antoine (Cônsul Honorário do Haiti)
Um dia após suas declarações cristãs, Samuel pediu desculpas em entrevista coletiva, esclarecendo que fala diversos idiomas mas que, mesmo há mais de 30 anos no Brasil, “não domina a língua portuguesa”. Disse também, por meio de nota do consulado, que “teve seus dizeres interpretados de maneira deturpada“.
Antoine é um escroque, e suas explicações só acentuam a baixeza de seu caráter; mas muitos pensam como ele, pessoas de bem, como alguns dos meus leitores. Parte de toda esta fantasia sobre a realidade pode ser explicada pelos fenômenos psicológicos conhecidos por (1) Desvios Cognitivos de Confirmação, (2) ToM – Teorias da Mente, (3) e a adesão do cérebro humano a Falsos Positivos – resultantes de aspectos neurais potencializados pela ignorância sobre o comportamento humano, sobre a aleatoriedade, além de disciplinas do ensino fundamental e avançado.
Ainda no Haiti, Hoteline Losama, entre outras pessoas, foi resgata com vida quase uma semana após o sismo. Durante este tempo ela esteve protegida por um espaço aleatoriamente formado por forros, pedras, e uma geladeira, e perto de muitos mais cadáveres que não gozaram da mesma sorte; mas ainda assim um dos membros do grupo de resgate afirmou ter sido “uma bênção”. A jovem resgatada considerou o seu destino como “um milagre”.
Desviar os olhos dos 316 mil mortos, entre eles muitas crianças, e celebrar como “benção” o resgate de uma única pessoa, e corroborando assim uma crença prévia em bênçãos e milagres, constitui um clássico exemplo dos Desvios Cognitivos de Confirmação – e uma atitude execrável…
Quinze dias após o terremoto, um homem ligou para os seus familiares e amigos, e uma mulher ainda soterrada atendeu. Ela estava viva, e houve comoção e clamor: “Milagre!”. Ela tentou orientar as buscas, e uma equipe da Cruz Vermelha Internacional foi até o local com cães farejadores, mas o esforço foi em vão. A bateria acabou, e as equipes de resgate não puderam encontrá-la com vida. Se deus pretendia tal destino, por que permitiu a ligação telefônica? Onde está a “força superior”, senão em nossa formação inferior, além de tendências ilusórias, e propensão ao autoengano?
E peço aqui que outra mulher, também excepcional, dê o seu recado:
Eu não acredito nestas pessoas que sabem tão bem o que deus quer que elas façam; por perceber que isso sempre coincide com seus próprios desejos. – Susan Anthony
Durante um desmoronamento em uma mina no Chile, 13 homens foram soterrados. Vozes foram detectadas, e saíram as manchetes nos jornais: “13 hombres y un MILAGRO!”. Depois se descobriu que apenas um homem, dentre os treze soterrados, havia sobrevivido: “milagro”.
Mas como o nosso cérebro nos convence de que estamos sempre certos? Michael Shermer nos mostra o caminho:
Uma vez que criamos uma crença, e nos comprometemos com ela, nós a mantemos e reforçamos com fortes heurísticas cognitivas, que garantem que ela esteja correta. Uma heurística é um método mental para resolver problemas pela intuição, pela tentativa e erro […]. – Michael Shermer (Cérebro e Crença; 2012)
Essas heurísticas podem no entanto falhar, e falham com muito mais frequência do que imaginamos, distorcendo a nossa percepção da realidade, e encaixando conceitos pré-concebidos, conhecidos como Desvios Cognitivos de Confirmação.
Crenças configuram percepções. Não importa que sistema de crenças esteja funcionando — religiosas, políticas, econômicas ou sociais —, esses desvios cognitivos moldam a maneira como interpretamos a informação que chega por intermédio de nossos sentidos e dão uma forma adequada à maneira como queremos que o mundo seja, e não necessariamente como ele realmente é. Chamo esse processo de confirmação de crença. – Ibidem
Existem heurísticas cognitivas ou desvios específicos, que operam para confirmar as nossas crenças, atuando em conjuntamente como outros distúrbios, como a tendência à busca e reconhecimento de padrões; um recurso evolutivo essencial, mas que pode falhar, detectando falsos padrões, além da tendência ao animismo e ao intencionalimo.
Vejam o poder da crença, conduzidos pelo autor da área científica, roteirista – MacGyver e Star Trek – e físico, Leonard Mlodinow:
Alguns anos atrás, um homem ganhou na loteria nacional espanhola com um bilhete que terminava com o número 48. Orgulhoso por seu ‘feito’, ele revelou a teoria que o levou à fortuna. “Sonhei com o número 7 por 7 noites consecutivas”, disse, “e 7 vezes 7 é 48”. Quem tiver melhor domínio da tabuada talvez ache graça do erro, mas todos nós criamos um olhar próprio sobre o próprio e o empregamos para filtrar e processar nossas percepções, extraindo significados do oceano de dados que nos inunda diariamente. E cometemos erros que, ainda que menos óbvios, são tão significativos quanto esse. – Leonard Mlodinow (Subliminar; 2013)
Estes erros fazem parte do corpus de estudo da Neuropsicologia. No caso acima, o felizardo ganhador e crente no sobrenatural, incorreu em pelo menos um Desvio Cognitivo de Confirmação: a Tendência Retrospectiva; além do singelo desvio intelectivo, afinal “7×7” é matéria do ensino básico, e o resultado é “49”, e não “48”. Shermer nos esclarece a questão em Por que acreditamos em coisas estranhas (2011) e Cérebro e Crença (2012):
Construímos nossas crenças por várias e diferentes razões subjetivas, pessoais, emocionais e psicológicas, em contextos criados pela família, por amigos, colegas, pela cultura e a sociedade. Uma vez consolidadas essas crenças, nós as defendemos, justificamos com uma profusão de razões intelectuais, argumentos convincentes e explicações racionais; Primeiro surgem as crenças e depois as explicações. – Michael Shermer (Cérebro e Crença; 2012)
Primeiro aderimos às crenças, para só então tratar de justificá-las por meio de argumentos supostamente racionais. E por esta razão, pessoas inteligentes e cultas também podem acreditar em coisas absurdas.
Hume, indelével:
Os homens não ousam confessar, nem mesmo a seus corações, as dúvidas que têm a respeito desses assuntos. Eles valorizam a fé implícita; e disfarçam para si mesmos a sua real descrença, por meio das afirmações mais convictas e do fanatismo mais positivo. – David Hume
James, impecável:
Alucinação é uma forma estritamente sensacional de consciência, uma sensação tão boa e verdadeira quanto se estivesse ali um objeto verdadeiro. Acontece, simplesmente, que o objeto não está ali. – William James (Princípios de Psicologia; 1890)
Q.E.D.
Carlos Sherman
ARTIGOS RELACIONADOS