Por Carlos Sherman
Dedicado ao meu amigo Edson Lopes
Somos todos ignorantes,
mas não sobre as mesmas coisas.
Albert Einstein
ENDEREÇAR A VERDADE CONSISTE EM CONHECER OS FATOS, NÃO AS OPINIÕES… E é exatamente isso que praticamos todos os dias no campo da Justiça, baseado no vigoroso e inefável princípio do onus probandi… Neste artigo em especial citarei muitos dos homens notáveis sobre os ombros dos quais este anão que vos dirige a palavra subiu para ver mais longe… muito mais longe!!!
———————-
Einstein disse com insuspeita ironia que somos todos ignorantes, mas não sobre as mesmas coisas; e poderíamos ainda apendar o célebre pensador ashkenazi destacando a escala da ignorância e a gradação do erro associado ao feito – ou desfeito, ou defeito! Somos todos ignorantes, sim, mas não sobre as mesmas coisas, nem no mesmo grau…
Certa feita, o físico Isaac Asimov recebeu uma carta de um licenciado em literatura inglesa que muito vem ao caso:
“Um jovem especialista em literatura inglesa, tendo me citado, passou a me repreender severamente sobre o fato de que, através dos séculos, as pessoas pensavam ter compreendido finalmente o universo, e através dos séculos ficou provado que estavam errados. Isso significava que a única coisa que podemos dizer sobre o nosso conhecimento ‘moderno’ é que ele está errado. – Isaac Asimov (A Relatividade do Erro; 1989)
Asimov brilharia em sua resposta:
“Quando as pessoas pensavam que a Terra era plana, estavam erradas. Quando as pessoas pensavam que a Terra era – ‘exatamente’ [grifo meu] – esférica, estavam erradas. Mas, se você considera que ‘pensar que a Terra é esférica é tão errado quanto pensar que a Terra é plana’, então a sua visão está mais errada do que as duas juntas. – Ibidem
Ele explicaria ainda que as pessoas sempre buscam certezas ou negações absolutas. Agrego que as pessoas estão platonicamente aprisionadas em uma fantasiosa expectativa de perfeição; de forma que se alguma coisa não é “exatamente” ou “absolutamente” perfeita então ela estará totalmente errada; e isso não nos leva a nada. Existem gradações de erros, sentenças verdadeiras e falsas, e a veracidade de proposições pode conter um grau de força; e a ostentação de verdades absolutas somente serve ao propósito de turvar a visão crítica diante da realidade objetiva.
Quando um suposto divulgador científico como Gleiser [o Marcelo] chama pejorativamente o honesto e abnegado esforço humano na busca pelo conhecimento de “objetivismo”, ele está alimentando a confusão reinante, e acirrando o falacioso debate sobre razão versus emoção, ou sobre conhecimento versus sensibilidade.
“Objetivismo” é particularmente abjeto, irresponsável, e injustificável, partindo de alguém que se declara comprometido com o conhecimento e seus critérios de validez; sempre lembrando que um tapa na cara da racionalidade corresponde a um tapa na cara da verdade… Podemos sim endereçar a verdade, sendo este o propósito da investigação científica – muito embora não seja a sua fonte de inspiração… Somos inspirados pela beleza da vida, por nossas paixões, amores, e pela devoção a estes amores e princípios. E aqui discordo de outro conceito da “ilha” de Gleiser (A Ilha do Conhecimento – Os Limites da Ciência e A Busca Por Sentido; 2015), quando o autor afirma que a motivação científica seja a “ignorância”. Na verdade, pretendemos escrever a poesia da realidade – e por amor!
Aquele que se sabe profundo esforça-se por ser claro; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforça-se por ser obscuro. Porque a multidão acredita ser profundo tudo aquilo de que não pode ver o fundo. Tem tanto medo! Gosta tão pouco de se meter na água! – Friedrich Nietzsche (A Gaia Ciência; 2012)
Sob o pretexto de uma tal “verdade absoluta”, Gleiser questiona a existência de verdades, e da própria análise objetiva sobre a veracidade de proposições – assim como o professor de literatura de Asimov. Gleiser alega procurar “sentido em sua vida”, disparando contra a CIÊNCIA e contra o conhecimento… Mas não demonstra mais do que suas próprias e covardes limitações. Aliás, Galileu, célebre “cavaleiro do apocalipse”, salvaguardaria o vigor de sua lucidez e à postos, tendo escolhido ridicularizar crendices infundadas, as mesmas professadas por Gleiser – quando disse que:
“Io stimo più il trovar un vero, benché di cosa leggiera, che `l disputar lungamente delle massime questioni senza conseguir verità nissuna. / Mais estimo encontrar uma verdade sobre qualquer assunto leve do que entrar em uma disputa longa sobre máximas questões sem atingir verdade nenhuma. – Galileu Galilei
Mas Galileu também esteve equivocado algumas vezes, como no notório caso dos anéis de Saturno; afinal, com o seu parco instrumento de trabalho e as compreensíveis dificuldades com o foco, os famosos discos lhe pareceram dois astros mais ladeando o planeta. Mas os acertos de Galileu, seu exemplo e vida, valem muito mais do que seus evidentes equívocos – e Gleiser deveria saber disso.
Por exemplo, enquanto especulávamos sobre a planura da Terra estivemos equivocados; mas tratávamos de endereçar a verdade, afinal a curvatura da superfície terrestre está sim muito próxima de zero. Este erro refletia as limitações instrumentais para a época; mas também, e sobretudo, refletia as limitações em termos de critérios para o conhecimento. Ainda não havia uma concisa teoria para o conhecimento, nem estatutos, nem recomendações formais, ou uma metodologia para o conhecimento que estabelecesse um universo de validez, indicando a margem de erro esperada no confronto com a realidade. As “verdades” eram publicadas com ansiedade e alarde; e, portanto, sem critérios. Tudo estava por saber, e não sabíamos ao certo como saber.
Mas os tempos mudaram, e mudaram com o filósofo grego Erastóstenes (276-195 AEC), um “gênio do tamanho da Terra”… que seria o primeiro a notar que a longitude das sombras em relação ao mesmo horário do dia variava com a latitude onde a medição fosse procedida. Erastóstenes sabia que no vigésimo primeiro dia do mês de Junho aconteceria o Solstício de Verão na cidade de Siena; e que, precisamente ao meio dia o Sol brilharia direto dentro de um poço, iluminando “o seu fundo sem que nenhuma sombra se projetasse em suas paredes”; isso, enquanto em Alexandria exatamente à mesma hora ainda haveriam sombras projetadas sobre a parede.
Erastóstenes inferiria, então, que a Terra devia ser esférica; uma revolução para o seu tempo. Com ajuda da trigonometria, considerando a distância entre Siena e Alexandria e o ângulo formado por este arco em relação ao “centro da Terra”, ele calculou a curvatura correta da Terra. Isso foi medido em “passos” e “estádios”, e envolveu “sombras”; tudo muito impreciso, embora engenhoso, perspicaz, apaixonante e científico…
Endereçávamos a verdade com ainda mais acuracidade, ao que hoje podemos adicionar algumas casas decimais, calculando a curvatura da Terra em 0,0000786 por quilômetro. Isso seria crucial para que pudéssemos revisar toda a cartografia da época… E os mapas, palmo-a-palmo, passariam a ser muito mais precisos, a navegação revolucionada, e o mundo redescoberto. Tudo isso graças ao gênio e à ousadia de Erastóstenes – e apesar do erro irremediavelmente incorporado pelas limitações de seu tempo.
“A ciência, meu rapaz, é feita de erros, mas estes são erros uteis de serem cometidos, pois nos conduzem pouco a pouco à verdade. – Jules Verne (Viagem ao Centro da Terra)
Agora a Terra era uma “esfera” perfeita, o que também estaria equivocado por algum tempo. Observando os céus e os demais planetas, o gênio investigativo de Newton demonstraria que a massa terrestre em rotação sofria um acentuado achatamento nos polos. Medidas mais precisas nos permitiriam calcular o grau de elipsidade da Terra. A Terra esferoide ainda seria muito mais próxima de seu passado esférico do que de seu passado plano – e diminuindo a gradação de erro. Uma esfera prefeita nos daria uma curvatura em torno de 12,5 cm/km, enquanto a curvatura elíptica varia de fato entre 12,657 e 12,472 cm/km. Estávamos chegando lá!
Este raciocínio conduzido por Asimov, lato sensu, nos permite dizer que julgar a Terra esférica é muito mais correto do que considerá-la plana; e tal noção tem enorme impacto sobre as nossas vidas. Também podemos dizer que julgar a Terra plana é muito mais incorreto do que julgá-la esférica, com os mesmos e severos impactos sobre o nosso convívio com a realidade objetiva. E ensinar tais princípios, valorizar o endereçamento obstinado da verdade, é muito mais produtivo do que destacar a imprecisão deitada sobre o caminho…
Mesmo o nosso esferoide perfeito seria revisado em 1958, quando o satélite Vanguard I entrou na orbita da Terra. Uma literal vanguarda científica seria capaz de medir a forma de nosso planeta com uma precisão sem precedentes. Descobrimos que nos parecíamos com alguma coisa entre uma pera e uma batata – flutuando e rodopiando no espaço. Correções da ordem de milionésimos de centímetros por quilômetro foram procedidas, e aqui estamos – graças ao gênio de Erastóstenes!
Vivemos um conflito neuropsicológico de ordem evolutiva; somos causais, dicotômicos, lineares, animistas, essencialistas, intencionalistas, maniqueístas, e tateamos assustados no terceiro milênio, utilizando cérebros de 150.000 anos, adaptados à savana africana… Vagamos perdidos em uma espécie de gangorra de absolutos, tudo ou nada, certo e errado, bom ou mal. Estamos presos aos valiosos instintos da categorização e do reconhecimento de padrões; e isso, por convenção, se chama inteligência… Mas nos equivocamos, ou tropeçamos em imprecisões… e portanto necessitamos de uma metodologia para a validez de nossos avanços, assim como a análise crítica independente de nossos pares ou rivais… E é assim que consolidamos um corpus de conhecimento humano… global…
Isso, enquanto a realidade se descortina livre, desimpedida, solicitando o contínuo registro de acertos, sempre associado à sua imprecisão ou erro… assumido! Esta atitude ética conforma avanços objetivos. O absolutismo, o generalismo, e seu homólogo, o relativismo, tem se prestado ao inconsequente e especioso propósito de justificar medidas autoritárias e dogmáticas, alegando a impossibilidade de exatidão. Pois não seria sempre bem melhor acender um pequeno lampejo de luz do que tropeçar na escuridão?
Hoje sabemos que a mecânica genética de nosso corpo evoluiu para mitigar os erros e mutações em nosso DNA. É isso mesmo, o código genético tem um mecanismo autocorretivo, e desta forma estamos menos sujeitos a mutações drásticas do que estivemos no passado. E podemos dizer que a Ciência conta hoje com o mesmo sofisticado mecanismo: o Método Científico, o Método Dedutivo Baseado em Prova (Popper). De forma que a falibilidade assumida da Ciência de hoje em diante está muito menos sujeita a erros crassos do que esteve no passado das crenças.
[…] talvez a Terra seja esférica agora, mas um cubo no próximo século, e um icosaedro oco no próximo, e com a forma de donuts no seguinte. O que ocorre, na realidade, é que quando os cientistas conseguem elaborar um bom conceito, eles gradualmente o refinam e ampliam, com crescente sutileza, à medida que seus instrumentos de medição melhoram. As teorias não estão tão equivocadas, mas incompletas. – Isaac Asimov (Ibidem)
Não é tão importante definir se este valoroso processo se estenderá indefinidamente ou não, absolutamente ou não; mas, sobretudo, devemos considerar o bem que este honesto trabalho provê; na medida em que inescapavelmente ilumina o que antes era escuridão. O importante não é a perfeição, senão progressar… Assim, em 250 anos de maturidade científica, triplicamos a expectativa de vida adormecida desde o Homem de Cro-magnon, há 50.000 anos, reduzimos em quarenta vezes a mortalidade infantil, e a violência em cem vezes… enquanto a população foi multiplicada sete vezes.
Hoje, muitas teorias que alcançam o status de revolução científica não passam de um conjunto apropriado manipulações e refinamentos de um corpus de conhecimento pregresso; como quando Copérnico nos levou de um sistema centrado na Terra para um sistema centrado no Sol. Copérnico estava desafiando o que parecia ser óbvio com algo que soava ridículo. Aristarco de Samos e Erastóstenes viveram a mesma experiência… O personalismo do empenho científico também cedeu lugar ao trabalho independente de grupos e escolas, promovendo conclusões conscilientes.
Normalmente, e há algum tempo, vivemos de refinamentos; caso contrário, e considerando a autorregularão e autocorreção científica em voga, uma teoria estapafúrdia teria vida muito curta. Exemplos pífios como a “fusão a frio” não passaram de pseudociência, e não resistiram o crivo científico mais elementar. Isso nos deveria alertar ainda mais sobre a necessidade de aprimorar nossos critérios, e não desconsiderá-los – como Gleiser e o “professor de literatura” sugerem.
Voltando a Copérnico, e por mais que a proposição heliocêntrica parecesse revolucionária, todo este alvoroço não passou de um problema político-religioso – da alçada do “absoluto” e do “absolutismo”. Cientificamente, no entanto, tratava-se de um refinamento teórico em relação aos movimentos dos já conhecidos corpos celestes. Seria a autoridade religiosa Católica, expressa em seu “livro negro” ou Index, quem elevaria o trabalho de Copérnico à condição de heresia – sete décadas depois de sua publicação em 1616, e lá permanecendo até 1822; mas já era tarde, e o estrago já estava feito…
Copérnico pretendia apenas encontrar um modelo que melhor acomodasse a realidade de suas observações celestiais. Neste caso, e em especial, apesar de toda a gambiarra incorporada ao modelo aristotélico-ptolomaico, a sobrevivência do antigo – “salvando a teoria” platonicamente – só seria possível, e por tanto tempo, devido à força da autoridade político-religiosa vigente.
A Teoria da Evolução enfrentaria os mesmos credos e as mesmas barricadas:
[…] as formações geológicas terrestres mudam muito lentamente, assim como os seres vivos evoluem tão lentamente, que parecia razoável no início supor que não havia mudanças, e que a Terra e a Vida sempre existiram como são até hoje. Sendo assim, não faria diferença se a Terra e a Vida tivessem bilhões de anos de antiguidade, ou somente milhares. Milhares era mais fácil de compreender. – Ibidem
A exemplo do entendimento sobre a curvatura terrestre, quando medições mais precisas revelaram que a Vida evoluía em um ritmo muito lento, porém vigoroso, pudemos aprofundar também a compreensão sobre a idade da Vida. Nasciam a Geologia Moderna, a Evolução, e a Biologia.
“É apenas porque a diferença entre taxa de variação em um universo estático e a taxa de variação em um universo em evolução está entre zero e muito próximo de zero que os criacionistas podem continuar a propagar seus disparates. – Ibidem
O raciocínio também se aplica ao mundo dos micro-organismos. Um mundo de escalas invisíveis estava escondido de nós; e toda sorte de crendice seria erigida para preencher as lacunas diminutas hoje ocupadas pela Microbiologia. Cotidianamente, usávamos dizer – e muitos ainda o fazem: “menino, não tome esta friagem porque você vai ficar gripado”. Recentemente ouvi tal disparate de uma amiga microbiologista, para quem o filho descalço resultaria resfriado. Tratei de recordá-la de dois aspectos: primeiro, como microbiologista, ela estava obrigada a bem conhecer a origem viral das gripes e resfriados; depois, como bióloga, seria imperdoável que ela não recordasse que a seleção natural jamais teria poupado nórdicos, russos, além dos inuits, se tal conjectura sobre a “friagem” fosse minimamente verdadeira.
Os “sábios” conselhos da dita “medicina popular” ou “medicina alternativa” estão todos sub judice depois que a ciência adentrou o mundo secreto dos microrganismos, e ajustando a sua escala para uma compreensão profunda e necessária da natureza: a realidade em uma Placa de Petri… Deuses e tradições evaporavam no ar, enquanto a Ciência aprimorava seus métodos e instrumentos e reduzia suas escalas. O caminho estava aberto para a descoberta dos antibióticos, vacinas, medicamentos… e mais vida – a partir da vida obstinada de homens como Pasteur.
O gap entre o conhecimento disponível no acervo científico humano e a nossa práxis popular é gigantesco. Com a desculpa de que “não sabemos tudo” permanecemos proibidos de saber, ou “sem saber nada” sobre quase tudo. Apenas tangenciávamos a realidade; mas não éramos capazes ou encorajados a mergulhar nesta maravilhosa realidade… Na POESIA DA REALIDADE! Quando escrevi FIAT LUX – O Homem, Memória do Universo estabeleci como missão colateral interessar meus leitores pela realidade, despertando a curiosidade em conhecê-la por dentro… além da realidade sobre nossa própria realidade.
O conhecimento científico disponível está muito mais perto de um eventual conhecimento último – em cada uma de suas fronteiras – do que o fulano médio está da linha de largada para o conhecimento do ensino fundamental. A maioria de nós sequer começou a jornada do conhecimento, e sequer chegou na marca onde diz: ZERO.
O físico Marcelo Gleiser diz que o conhecimento é como uma “ilha” em meio ao desconhecido; e que quanto mais esta “ilha” cresce maior serão as suas fronteiras. É verdade. Mas quanto mais esta ilha do que é conhecido cresce, por mais que haja novas fronteiras, menor será o espaço lá fora – ou daquilo que ainda não conhecemos. Afinal, o Universo é finito, assim como finita é a sua estrutura.
Hoje, ainda podemos chutar uma pedra sem ressalvas, mas pensaremos duas vezes antes de pisar em uma formiga ou esmagar um mosquito, e jamais consideraremos a hipótese de maltratar um cãozinho. Estas são conquistar recentes, afinal aprendemos sobre a complexidade dos sistemas neurais, e sabemos que muitos seres vivos sentem dor e vivenciam o sofrimento neuropsicológico.
Por isso, avançamos sobre o oceano de ignorância que nos cercava – arbitrado pela crença de que o homem era uma espécie de “escolhido”, e sendo o único sujeito à dor. Ainda assim, na Bíblia e em Aristóteles, alguns homens são mais escolhidos do que outros, e a escravidão é amplamente aceita e recomendada. Matar um infiel – na Bíblia e no Corão – é antes um dever… Pelo humanismo, pela iluminação científica, sabemos que isso não é correto. Tais fronteiras não aumentaram a nossa ignorância, mas certamente abriram novos caminhos dentro da “ilha”.
“O conhecimento avança, e a região inexplorada recua […] com nosso conhecimento expandido. – Linda Randall
Um dia, este espaço tomado pelo desconhecido representou a diferença entre morrer na selva de dor de dente aos 23 anos ou ministrar uma dose de 500 mg de Cloridrato de Tetraciclina, e voltar a sorrir por mais 40, 50, 60 anos… O importante, portanto, não é chegar ao fim de seja lá o que for, mas seguir em frente, curtir a viagem, viver uma vida digna, útil, e prazenteira; contribuindo como parte de um organismo maior chamado: Humanidade.
Gleiser insiste, sob o tendencioso pretexto de que a Ciência não poderá ser exata ou completa, que uma tal “espiritualidade” ainda mais inexata e na verdade “irreal” poderá ser invocada para preencher tais lacunas.
“Uma balança mede o nosso peso com precisão dada pela metade de sua menor graduação: se a escala é espaçada por 500 gramas, só poderemos aferir o nosso peso com precisão de 250 gramas. Não existe medida exata: toda medida deve ser expressa dentro da precisão do instrumento usado e o faz com ‘barras de erros’. […] uma medida de 70 quilos deve ser expressa como 70 +/- 0,25 kg […]. Não existem medidas perfeitas, sem erro. – Marcelo Gleiser (A Ilha do Conhecimento)
Sim, mas e daí? Uma balança caseira de precisão de uma ou duas casas decimais está sob um crivo mais frouxo em termos científicos; mas quanto mais ciência mais exatidão. Medimos a temperatura média do Universo com precisão de 5 casas decimais. Não há como ser “exato”, “absoluto”, mas e daí? Indicar a margem de erro é uma lição Ética da Ciência, e não o contrário. Deus e a religião não indicam suas margens de erro; e seus fies seguidores simplesmente justificam isso alegando que “o absoluto a deus pertence”, ou é “incognoscível”… Mas não precisamos da perfeição, já que a natureza e o universo emergem da imperfeição e da diferença. O argumento de Gleiser é pois meramente platônico, para não dizer falacioso e desonesto.
Asimov parece concordar com isso, e tem algo mais a dizer sobre a Ciência e a escuridão:
“Existe apenas a Luz da Ciência, e acendê-la em qualquer lugar é como acendê-la em todos os lugares. – Isaac Asimov (A Relatividade do Erro)
Em busca do exato, do absoluto, do “espiritual”, nos esquecemos ou simplesmente desconhecemos a existência de gradações de erro – uma falibilidade assumida na atitude científica, e sendo essa sua maior fortaleza, e não o contrário. Saber de tudo, repito, é um agravante religioso, e não científico. Esta atitude covarde ou amedrontada diante da vida, politicamente ou falsamente “correta”, orquestrada ou não, é o que mais prejudica o avanço científico e humano.
“Quem pensa ver algo sem falhas, pensa naquilo que nunca existiu, que não existe, e que nunca existirá. – Alexander Pope
O vigoroso e genial físico Richard Feynman dá o seu depoimento:
“Um princípio de pensamento científico corresponde a uma espécie de honestidade incondicional […].
É esta honestidade incondicional ou Ética que reside no Ceticismo Científico; confrontando a vacuidade das crenças e os discursos persuasivos, que trabalham nas sombras e em favor de mentiras, interesses e sandices. Isso porque as crenças se baseiam apenas na caprichosa, débil ou vã vontade de acreditar. Não se pode, de forma alguma, comparar a nobre atitude de tornar-se ciente pelo confronto de hipóteses sérias e consequentes com a realidade, com a autoridade especiosa de velhas ou novas convicções.
Não se pode usar como desculpa a falibilidade assumida da ciência para validar crenças. Uma verdade científica tem uma validez e universo de aplicação, assim como seu erro assumidamente demarcado, e que estará sob crivo constante, acirrada revisão, e variada fiscalização, sendo esta a maior fortaleza da Ciência, e não o contrário – insisto…
Sobre a pretensa crítica ao erro científico, devo reagir lembrando que dogmas religiosos não podem ser revistos, e por isso mesmo sua defesa se faz com cinismo, agressividade, violência; e no passado médio, por meio dos artefatos do terror “inquisitório”. Asimov nos ensinou sobre a relatividade do erro e não da VERDADE…
E insisto que nenhum debate dito filosófico ou político – e sob nenhum pretexto – estará isento da necessidade de entender antes sobre a realidade e os subsequentes parâmetros que regem a nossa tênue lucidez neuropsicológica.
Inventamos a Ciência, em última análise,
para testar a nossa própria lucidez!
Pinker nos remete com brilhantismo à nossa origem biológica:
“Nossa mente evoluiu pela seleção natural para a adaptação, e não para a busca da verdade. – Steven Pinker (Como a Mente Funciona; 2003)
Um anúncio afixado diante de uma igreja batista americana da seita New Canaan [ou Nova Canaã], alertava no terceiro milênio:
“Um livre pensador é um escravo de Satã.
Sei que Gleiser alegará que esta congregação é doentia, ou que ele não fala “desse tipo de espiritualidade”, mas crimes contra a liberdade de pensamento sempre estão associados à religião.
“Com ou sem religião, pessoas boas podem se comportar bem e as pessoas ruins podem fazer o mal; mas para que pessoas boas façam o mal, elas precisam de religião. – Steven Weinberg (discurso em Washington em 1999)
Sobre os “limites do conhecimento”, Asimov desafia:
“Se o conhecimento pode nos trazer problemas, não será através da ignorância que iremos resolvê-los.
Gleiser insiste na escuridão científica justificada por sua inexatidão e reducionismo, mas tolera sem pesos ou medidas uma tal “espiritualidade”. Convido a advertência de Sagan no adágio de abertura de seu inesquecível O Mundo Assombrado por Demônios:
“É melhor acender uma vela do que praguejar contra a escuridão.
Por que escrever uma obra para ressaltar os limites da Ciência, se as fronteiras continuam “dentro da ilha”? E como Gleiser citou a Lucrécio – inestimável livre pensador – de forma desonesta, eu respondo também com o vigoroso e corajoso Lucretius:
“Assim como as crianças tremem e têm medo de tudo na escuridão cega, também nós, à claridade da luz, às vezes tememos o que não deveria inspirar mais temor do que as coisas que aterrorizam as crianças no escuro. – Titus Lucretius Carus (De Rerum Natura [ou Sobre a Natureza das Coisas]; 60 AEC)
Devo lembrar a Gleiser que Lucrécio foi o verdadeiro algoz histórico dos deuses, sendo seguido por Jean Meslier, para que Nietzsche levasse a fama. Mas existem verdades? Existe uma verdade absoluta? A primeira questão é objeto de trabalho da Ciência, a segunda parte de pressupostos fechados e dogmas religiosos; mas podemos sim afirmar que existem verdades, existem asserções verdadeiras, assim como proposições mais corretas do que outras, e diferentes gradações de erro. E sabemos disso com ainda mais segurança depois de Tarski, Russell, Frege, Popper, Sagan e Asimov…
FELIZ DO HOMEM QUE PODE OPTAR PELA VERDADE!
Q.E.D.
Carlos Sherman
ARTIGOS RELACIONADOS