Por Carlos Sherman
‘São Sir Thomas More’ (1478-1535) foi um homem de estado, diplomata, escritor, advogado e ocupou vários cargos públicos, e em especial, de 1529 a 1532, o cargo de “Lord Chancellor” (Chanceler do Reino – o primeiro leigo em vários séculos) de Henrique VIII da Inglaterra… More descreveu a si mesmo como um homem “de família honrada, sem ser célebre, e um tanto entendido em letras”… Era filho do juiz Sir John More, e foi investido cavaleiro por Eduardo IV – daí o Sir… Apesar de ser considerado um dos grandes humanistas do Renascimento, foi canonizado como ‘santo’ pela ‘Santa’ Igreja Católica em 9 de Maio de 1935, e sua ‘festa litúrgica’ é celebrada em 22 de Junho – daí o São… É mole?
More, ao que tudo indica, ‘era homem de muito bom humor, caseiro e dedicado à família, muito próximo e amigo dos filhos’, o que era raro para a sua época… Também era considerado um grande ‘amigo de seus amigos’, entre os quais se destacavam os maiores humanistas de seu tempo, como Erasmo de Rotterdam (1466-1536) – que escreveu o célebre ‘Elogio da Loucura’ publicado em 1511, um dos mais influentes livros da civilização ocidental e um dos catalisadores da Reforma Protestante, tendo ele sido acusado de ‘colocar o ovo que Lutero chocou’ – e Luis Vives (1492-1540) – teve profunda influência sobre Montaigne, que por sua vez foi devorado por Rousseau e que finalmente foi canibalizado por Marx; em outra vertente pode ter sido absorvido pelo freudismo…
O conceito de ‘utopia’ foi idealizado e encenado por ‘São Sir Thomas More’ em sua obra magna, ‘Utopia’ (1516)… Segundo vários historiadores, More ficou fascinado pelas extraordinárias narrativas de Américo Vespúcio sobre a recém avistada ilha de Fernando de Noronha, em 1503… More então idealizou um lugar novo e puro onde residiria uma sociedade perfeita… O termo passou então a designar a ideia de uma civilização perfeita, imaginária, fictícia… A palavra foi cunhada a partir de radicais gregos e significa um “lugar que não existe”…
A utopia de More descreve uma sociedade organizada ‘racionalmente’, que estabelece – impõe – a propriedade comum dos bens… Não enviam seus cidadãos à guerra – salvo em casos extremos -, mas contrata mercenários entre seus vizinhos mais belicosos – ops!!!… Todos os cidadãos da ilha vivem em casas iguais, a diferença interpessoal – e natural – não é considerada… Trabalham por períodos no campo e em seu tempo livre se dedicam a leitura e a arte… Mas quem proverá a leitura e a arte, e de onde virão as diferenças artísticas, diante de tal modelo ‘uniformista’? Toda a organização social da ilha conduz à completa dissolução das diferenças e a fomentar a igualdade… Não apenas condições iguais, mas pessoas moldadas como iguais, com rotinas iguais… Por exemplo, todas as cidades são geograficamente iguais, e na ‘ilha’ impera uma ‘paz total’ e uma ‘harmonia de interesses resultante de sua organização social’, utópica… Na ilha todo conflito foi eliminado, assim como suas potenciais possibilidades de materialização… Tudo isso é verdadeiramente assustador, além de completamente irreal…
Em geral se concebe como comunidade utópica uma sociedade ‘perfeita’, embora ‘inexistente’, nos moldes paradisíacos, mas sem explicar claramente como tal ‘milagre’ será obtido, e sempre partindo da falsa premissa de que ‘somos todos iguais’, e desprezando a força imperativa da genética, acentuando as nossas salutares e necessárias diferenças… Exacerba-se a figura de um organização completamente equitativa na distribuição dos recursos, a partir da eliminação de nossa impulsão natural ao empreendimento, em diferentes medidas… Queremos coisas diferentes entre nós, e entre nós e o conceito de ‘perfeição messiânica’ de More… O que é perfeição para More pode ser o inferno para outros…
Na Utopia de More todos os suprimentos necessários à sobrevivência são oferecidos gratuitamente, e ninguém retira mais do que necessita, e não há necessidade de estocar alimento, já que é oferecido em abundância – rsrsrsr, ai ai… Apesar do dinheiro não ser necessário, este é acumulado pela república utópica pela venda de matéria-prima para outras nações e às vezes é usado para financiar guerras no exterior – rsrsrsrs, infantil e realmente ‘utópico’, posto que tal sistema, se completamente isolado e diminuto em população, e contando com a sorte de suprimentos ‘infinito’ de alimento e energia, poderia até merecer alguns minutos de atenção, mas considerando o seu convívio com outras repúblicas não utópicas, fatalmente seria contaminado pela LIBERDADE…
More no entanto foi um homem coerente, e cuja retidão não pode ser retocada… Recebeu uma tremenda batata quente ao substituir o Arcebispo de York como chanceler no histórico divórcio e seguido de anulação de casamento de Henrique VIII… Na queda de braço entre o Vaticano e o rei inglês, foi a cabeça de More que rolou… Henrique VIII rompeu com a Santa Sé, sagrando-se líder espiritual da Igreja Anglicana… More recusou-se a prestar juramento ao rei na figura de líder da Igreja da Inglaterra naquele que ficou conhecido como o Ato de Supremacia… Pelo atrevimento de More, em toda a exuberância de sua Integridade Intelectual – divergências conceituais à parte – o réu foi condenado “a ser suspenso pelo pescoço e cair em terra ainda vivo, para depois ser esquartejado, e finalmente decapitado”… Mas, em ‘consideração’ à importância do condenado, o rei, “por clemência”, reduziu a pena à “simples decapitação”… More foi decapitado e teve a sua cabeça exposta durante um mês na Torre de Londres…
Morreu um homem digno, íntegro até o fim – embora o seu pensamento sob muitos aspectos não tenha passado de utopia e moralismo eclesiástico… More foi então considerado pela Santa Sé como um modelo de fidelidade e martírio em nome da Igreja, tendo sido, portanto, canonizado por decreto papal em 1935 por Pio XI… Mas sua atitude representou muito mais do isso, More foi fiel à sua consciência enfrentado a arbitrariedade, o que merece o mais profundo respeito humano…
A ‘república’ utópica de More, no entanto, já havia sido preconizada e encenada por Platão (427-347 AEC), em seu programa estatal impraticável, onde a justiça seria encontrada se – de forma um tanto simplista – “todos fizerem seu trabalho e cuidarem dos próprios assuntos”… Mas se não der certo pouca importância terá pois Platão profetiza de maneira incrivelmente vaga:
“(…) talvez no outro mundo ela esteja assentada como um modelo, um modelo que aqueles que o desejarem poderão contemplar e, assim, conseguir pôr em ordem as próprias cidades. Se tal cidade existe – ou se de fato existirá – não importa, pois tais pessoas viverão à maneira da cidade ideal e nada terão a ver com qualquer outro modelo“
Isso é ridículo… Leia mais uma vez, sem esquecer que este é o idolatrado e endeusado Platão… Sim… Foi ele mesmo quem escreveu está imbecilidade, esta pérola do non sense, esta verborragia vaga e vazia, que vai do nada ao lugar algum… Mas vamos adiante na República utópica de Platão, inspiração para More, e berço para viagem marxista… Veja como Platão começa sua República anedótica:
– Sócrates: Vamos considerar, antes de mais nada, como o modo de vida dos cidadãos, agora que assim os estabelecemos. Não produziram cereais, e vinho, e roupas, e calçados, e construirão casas para si? E quando estiverem abrigados, trabalharão, no verão, comumente, despidos e descalços, mas no inverno substancialmente vestidos e calçados. Eles se alimentarão de farinha de cevada e de trigo, assando-as e sovando-as, preparando bolos nobres e pães; eles os servirão sobre esteiras de junco ou folhas limpas, deitando-se enquanto comem sobre leitos espargidos com teixo e murta. E se regalarão com os filhos, bebendo vinho que fermentaram, com grinaldas na cabeça e cantando hinos em louvor aos deuses, em alegre conversação uns com os outros. E tomarão cuidado para que o tamanho das famílias não extrapole seus recursos/ prevendo a pobreza ou a guerra.
Rsrsrssrs, e então Glauco – adoro este cara – interpela:
– Glauco: Mas você não lhes deu qualquer condimento para as refeições.
Rsrsrsrs, estou transcrevendo a ‘famosa’ República de Platão, não é uma redação do meu sobrinho na quarta série, nem um papo gourmet entre Palmirinha e Ana Maria Braga… Mas Sócrates leva a sério, afinal isto é uma República – cuidemos do cardápio gastronômico de TODOS OS DIA ora bolas!!! -, e anui ao pedido de Glauco:
– Sócrates: É verdade, havia esquecido. É claro que devem ter condimentos – sal, olivas e queijo, e cozinharão raízes e ervas, dessas que costumam preparar as pessoas do campo. Para sobremesa lhes daremos figos, ervilhas e feijões; e assarão bagas de murta e bolotas de carvalho na fogueira, bebendo com moderação. E com tal dieta podem esperar viver em paz e saúde até idade avançada e legar uma vida semelhante aos seus filhos após a morte.
A expectativa de vida média em na Grécia de Platão – e Sócrates – girava torno dos 40 anos de idade – similar ao Homem de Cro-magnon no Paleolítico Superior – há 40.000 anos… O sentido da República de Platão parece escapar completamente a Sócrates – este Sócrates platônico -, a menos que seja só isso, um discussão superficial e mega-utópico sobre “figos, ervilhas e feijões”… Este é o ‘estadozinho frugal minimalista e vegetariano’, pra lá de utópico, deste ‘Sócrates platônico’; e vejam estão discorrendo sobre a formação de um estado definindo o seu cardápio gastronômico… Estas são transcrições da República de Platão:
A exegese de tais obras não deixa dúvida sobre a força da velha crença dominante de que a natureza humana não passa de uma ‘tábula rasa’ – termo cunhado por John Locke (1632-1704) -, uma folha em branco no qual a personalidade e o caráter são impressos por meio da cultura e do processo de socialização; desprezando inteiramente a condição natural do ser humano, em favor de uma ‘sociologização’ do comportamento…
Tal premissa equivocada, nortearia o pensamento ocidental, de Platão a Marx, passando por More, Montaigne e Rousseau, para citar apenas uma das inúmeras ramificações que tal doutrina – a tábula rasa – produziu… O freudismo e as próprias tradições espirituais, navegaram a mesma nau… Não somos produtos do meio, com Marx ‘reafirmou’… O aprendizado do meio, possibilitado e dirigido por nossa genética, operando a partir de nosso bioquímica e neurofisiologia, constitui o nosso complexo comportamento… Conceitos utópicos, como a “construção do novo homem” de Lenin, não só são uma caricatura falaciosa da realidade, como não passam de um “novo homem segundo a visão leninista-marxista”, utópico, irreal, e surreal…
Os séculos vindouros tratariam de cristalizar o conceito de utopia como uma saída crítica – e possível (será?) – para escapar de regimes perversos e arbitrários, como a Inglaterra de Henrique VIII, a partir da elucubração de um estado ideal, mas ‘atingível pela ação racional do homem social’, e a partir de sua luta para converter-se em seu contrário, ‘o bom selvagem’, o puro ser primitivo, preenchendo a tábula rasa, a partir da correta doutrina sociológica… Mas se a própria sociologia depende da complexidade e da evolução do homem primitivo, como ficamos? Um Reductio ad absurdum parece inevitável, não acham? Claro que sim…
Ou seja, utopia passou a designar a idealização de nosso desígnio mais nobre, repletos de ingenuidade, justiça e otimismo – ou ilusionismo… Ou talvez, a promessa vazia, e não testada, de uma organização impossível de ser realizada, posto que está fundamentada em falácias, remetendo à pura fantasia ou ficção filosófica…
O grande problema do marxismo, reside no fato de que Marx – administrado e financiado por Engels – decidiu deixar o mundinho utópico da especulação filosófica, e partir para a ação… E este movimento derramou muito sangue, e atrasou a saga humana… Pelo menos hoje sabemos ‘o que não funciona’… Impor, arbitrar, sob pretexto de romper o estado de imposição e arbítrio, é apenas trocar seis por meia dúzia… Mas muto pagaram com a vida, na Era da Utopias, nas mãos do fanatismo marxista, de viés leninista-stalinista, maoísta, ou sistemas análogos, como o hitlerismo e o fascismo em todas as suas modalidades…
O “Socialismo Utópico” tornou-se assim, a encarnação da ingenuidade do retorno ao ‘bom selvagem’ de Rousseau, a partir do idealismo possível da ‘tábula rasa’ de Locke, e tudo isso envolto em cinismo e ilusão fervorosa… Este manancial de bondades, deveria ser convertido em ação, e foi, a partir do Manifesto de Marx, em benefício de uma versão atuante da organização socialista, apresentada como única solução possível, e salvação messiânica, para romper séculos de miséria e sofrimento, o Samsara civilizatório, encerrando por tanto um ciclo de ‘vidas sociais’, em reencarnações históricas, e favor da LUX MARXIANA… A assim foi, movido por tais desígnios ‘religiosos’, que as bandeiras foram ‘içadas’, assim como os fuzis, em nome do amor, no melhor estilo bíblico, e mais uma Cruzada varreu a Terra… Triste destino…
Marx e Engels argumentavam que não partiam de meras fantasias ‘platônico-moreanas-rousseaulianas’ – entre outros teóricos como Tomaso Campanella, de Charles Fourier, de Robert Owen ou de Pierre-Joseph Proudhon -, mas sim de um modelo real, baseado apenas na crítica radical da situação existente, com base em sua visão do Leviatã Capitalista… Se a situação existe, logo ela é real, rsrsrsr.. Será??? E então podemos prever mecanismos para modificá-la, e então a modificação de algo real deverá ser real… Certo???? Depende…
Partindo das doutrinas da ‘tábula rasa’ e do ‘bom selvagem’, estaremos tentando modificar a realidade com varinhas de condão… Achando que podemos dizer à ‘humanidade’ o que eles devem querer, e com que deverão se contentar, estaremos confrontando a realidade com irrealidade… Mas, a partir da ‘constatação óbvia’, ao menos para Marx e Enegls, de que o capitalismo encerrava uma contradição em si, explicada pelo ‘dogma do caráter social da produção’, e de sua consequente apropriação privada, nefasta, indevida, através das hábeis maracutaias capitalistas, e munidos do chavão da luta de classes, o povo foi conclamado a governar, em um colossal gesto de populismo utópico…
O caráter “científico” do socialismo marxista foi consagrado na “Introdução à Crítica da Economia Política” – também de Marx -, onde, resumidamente, é afirmado que em algum ponto do processo de desenvolvimento – capitalista -, as forças produtivas da sociedade – trabalhadores – entraram em choque com as relações de produção existentes – relações de empregatícias e de trabalho, iniciativa privadas -, e tal conflito deflagra a ruptura entre a “superestrutura” da sociedade, relativa ao caráter social das relações de produção, e a sua base, dominada pela apropriação privada dos meios de produção – pelos capitalistas malvadões…
Uma era revolucionária então abre caminho, com foice e martelo, e muita violência… E a “nova sociedade emerge da velha para realizar a reconciliação entre forças produtivas”, ou ‘o juízo final’… pomposas palavras, e uma respeitável inteligência à serviço de uma falácia utópica baseada em falsas premissas… Então, as relações de produção, sem os grilhões da propriedade privada e da opressão política das classes dominantes sobre a maioria da população, avançaram em direção à vida eterna… E provavelmente em direção à um novo ciclo, de conflito e ruptura…
Foi o que se viu… O marxismo e seus ritos sagrados, por mais que sejam negados, provaram na prática, a infantilidade de seus postulados… Não significa que o Socialismo/Comunismo verdadeiro ou puro, não foi ‘ainda’ tentado, significa que esta ilusão é deveras irreal, inverossímil, piegas, populista, e, portanto, impraticável; i.e., UTÓPICA…
Segundo a fábula anedótica, no melhor estilo bíblico, o socialismo seria uma espécie de purgatório, a partir do qual atingiríamos o nirvana comunista… Uma espécie de ilha de Lesbos, o Eldorado, a Ilhota de More ou a República platônica… A verdade inequívoca, é que o ‘MUNDO MARXIANO’ trata messianicamente de “figos, ervilhas e feijões”, enquanto dá volta e voltas, em linguagem empolada e circular, baseando-se nas doutrinas superadas da ‘tábula rasa’ e ‘do bom selvagem’…
O ‘bom selvagem’ evoluiu para a realidade, na organização social a partir de anseios de decorrência genética, que culminam em comportamentos culturais – e sociais – e não o contrário… Empreendemos porque somos impelidos a isso, porque advém da natureza humana… A ‘tábula rasa’ de Locke, está sendo preenchida pela Genética e pela Neurociência, e o panorama é bem distinto à doutrina do homem como produto do meio…
Finalmente, a própria sociologia, que é parida neste estado de coisas, pelas ideologias do final do século XIX, está assentada sobre falácias… Durkheim promulga que “omnia cultura ex cultura“, ou que o fenômeno cultural – ou social – só pode ser explicado pelo fato cultural – ou social… Ledo engano…
OMNIA CULTURA EX HOMINEM
Carlos Sherman
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